À conversa com...Bequinhas!!
No “À conversa...” desta semana apresento-vos uma Mulher, uma Excelentíssima Senhora, a minha querida e amada Avó Bequinhas.
Quem me conhece sabe a importância que esta Senhora tem na minha Vida. Para mim, ela é uma segunda Mãe, literalmente. É a matriarca da família e a quem eu agradeço do fundo do coração por ter gerado a minha Mamã que possibilitou o meu nascimento.
Sou muito apegada, muito unida a esta Mulher inspiração. Ela é sem dúvida uma das mulheres da minha Vida. E as três, tantos de vocês nos viram juntas, fazíamos uma super equipa!!!
A Bequinhas é a minha convidada especial, pois fez 98 anos esta semana no dia 7 de novembro. Por isso, está de Parabéns e esta foi a forma que encontrei de a homenagear. Do fundo do meu coração, partilho convosco algumas das estórias da vida extraordinária que ela já viveu.
São muitos anos, muitos meses, muitos dias, muitas pessoas, nomes, países, cidades que se cruzaram com ela. Alguns, ela ainda se lembra, outros a memória por vezes não ajuda e ficam para trás. Tantas vezes disse, que a história dela dava um livro, hoje aqui fica um levantar do véu.
Leiam com carinho, com amor e inspirem-se nas palavras desta sobrevivente, lutadora e determinada em que a vida é feita de conversa, de muito amor e de saúde. O seu brinde é sempre “A nós e aos outros, muita saúde”.
Foi no sofá encarnado da sua casa em Benfica onde as duas no sentámos. Ela com o cachecol do seu Benfica ao pescoço, eu com o iPhone e com a Canon no botão on. Foi mais que uma entrevista, foi uma conversa de avó e neta, de partilha, de amor, de lágrimas e de sorrisos.
Nascida a 7 de novembro de 1918 na Rua do Loureiro, em Lisboa - Maria Perpétua Moisés Xavier Teixeira da Silva Serra Pereira. Foi a última de seis irmãs: Maria Beatriz, Lucinda, Júlia, Maria Eduarda e Maria Gertrudes. Os pais – Alberto e Maria Beatriz – foram os pilares da sua Vida, mas a morte prematura do pai deixou-a com um gosto agridoce e com um permanente vazio de amor de Pai.
Viveu sempre com o estigma que devia ter nascido rapaz, aliás diz que prefere os homens às mulheres. Ao lhe perguntar porquê, diz que prefere roupa de homem – umas boas calças de fazenda, uns sapatos de atacador à homem, uma boa jaqueta – prefere atores, escritores e cantores masculinos. Tem os U2, o Toni de Matos, o Kenny Rogers, o Ney Matogrosso, o Julio Iglesias na lista dos seus preferidos e durante muitos anos a banda sonora lá de casa, que tocava na aparelhagem Sony, as cassetes e os discos vinil destes músicos. Tem de haver sempre algo doce na sua casa, seja chocolate, sejam bolos, de preferência do Califa, a sua pastelaria de eleição.
É uma mulher de costela transmontana, que tem nas rugas da sua cara escrito o quanto já teve de passar ao longo destes anos. Quem olha para ela não percebe o quanto já sofreu, e o quanto já chorou. Mas como gosta de viver, e tem uma saúde de ferro, nada a abala excepto as partidas prematuras... uma muito recente de alguém que muito Amamos, admiramos e muita falta nos faz a ambas – a Mô, como a Bequinhas apelidava a minha Mamã...
Obrigada Avó do meu coração, tu que tanto me ensinaste, tu que tanto me inspiras e que todos os dias me lembras o quanto o amor, a honestidade e a saúde são dos bens que devemos zelar, e que nos fazem sentir vivos.
Vamos começar o “À conversa...” desta semana.
O teu nome é Maria Perpétua, mas quase todos te chamam carinhosamente por Bequinhas. Como surgiu este nome?
Não sei ao certo quando surgiu, até porque sempre me ouvi chamarem-me de Becas, desde que era pequena... A minha família , a Mamã e as minhas manas nunca me chamaram por Maria Pérpetua, mas sim sempre por Becas. Sempre fui conhecida por Becas. O Bequinhas surgiu por pessoas mais próximas que decidiram juntar ao nome o carinho que tinham por mim...
Nasceste no final da primeira grande guerra , foste a última rapariga de 6 irmãs, perdeste o teu papá muito cedo... foram tempos difíceis. Quais as ajudas que tiveste para sobreviver? E quais as que te ajudaram a crescer para ser uma mulher mais forte e rija?
Nunca conheci bem o meu Pai (Alberto), ele morreu quando eu tinha 18 meses, não tenho grande memória dele . Foi sempre uma mágoa grande com que tive de aprender a viver e entristece-me muito não ter tido tempo para desfrutar dele. Hoje em dia falo muitas vez com ele, mas é para o “retrato” que tenho dele aqui na sala. Desde há pouco tempo para cá deu-me esta vontade de falar com ele. Nunca é tarde, verdade?!
Desde que nasci foram tempos muito duros, onde houve pobreza e fome... Naquele tempo, pós guerra, onde éramos seis raparigas e uma Mulher, a Mamã Beatriz, tivemos de fazer tudo para sobreviver. Por exemplo, o natal entristece-me muito pelo que já passei... Nunca recebi uma boneca, nem nunca tive uma boneca para brincar. Brincávamos as seis (irmãs) com trapos, quando tínhamos. Hoje em dia quando vejo os meus bisnetos a receber tanto brinquedo fico feliz por eles, mas triste por dentro, pois acho que nunca fui criança, tive de crescer muito rápido e sinto que perdi a minha meninice.
Depois do papá morrer, foi terrível, vendemos os móveis para ganhar dinheiro e podermos comer. A casa ficou vazia e o senhorio colocou-nos na rua. Nesse momento, tivemos de nos separar. Foram tempos muito tristes, e muito difíceis quando uma família tem de se separar...
Eu fui para casa da minha Avó com a Mamã. As manas, umas casaram e outras sairam de Lisboa. Eu ainda terminei a quarta classe, fiz a prova de aferição ao liceu e tive notas boas, mas não pude prosseguir com os estudos. Se tivesse continuado, gostava de ter ido para o Conservatório de Música para estudar História da Música e aprender a tocar piano. Sabia tocar algumas coisas, pois em casa da Avó havia um piano mas ela não gostava que eu mexesse nas coisas dela. Foi uma prima que me ensinou as bases.
Todas começámos a trabalhar muito cedo por necessidade, eu aos 12 anos já estava empregada e tive de ir obrigada pela minha Avó. O meu primeiro trabalho foi na Rua António Pedro, numa costureira, onde a minha irmã Eduarda já trabalhava.
Também trabalhei num atelier no Chiado e foi aí que conheci a minha mais antiga amiga - a Maria Eunice, que era filha da patroa. Até temos uma fotografia em que estamos de vestido igual, fui que fiz, e tirámos uma foto as duas com o fotógrafo da rua.
Mais tarde tive de me separar também da minha Mamã, pois tivemos de sair de casa da Avó. Foi muito triste esta separação, pois a Mamã sempre foi e sempre será das pessoas mais importantes da minha vida.
Eu tenho a impressão que sou mais forte do que pensava, pois tenho ultrapassado muitas barreiras, muitos desafios, muita dor e tristeza. A fome, o trabalho intenso, a dor de perder muitos familiares, inclusive a minha Mô. Há dores que são estranguladoras e que nos deitam muito abaixo. Mas quando somos novas e temos uma vida pela frente...
Qual a zona de Lisboa que mais adoras e que possas contar alguma história sobre a mesma. Uma delas sei que é o Chiado...
Eu gosto muito do Chiado porque trabalhei lá muitos anos. Ia à Garret comer um bolo que era muito bom. Passeava pelo Chiado nos intervalos. Era uma zona muito animada. O atelier onde eu trabalhava era por cima da gardénia, antiga fábrica de chapéus.
Ao longo da tua vida e por circunstâncias do teu casamento tiveste diferentes moradas. Queres partilhar connosco quais e quando?
Os lares da minha infância já aqui partilhei... a minha última morada de solteira foi em casa da minha irmã Eduarda. Daí saí para casar e para ir morar com o meu marido, o Zé.
Conheci o Zé quando trabalhava na Rua António Pedro, e tinha 18 anos quando o conheci. Namorámos oito anos até termos idade autorizada na altura para casar que era apenas aos 26 anos. Casámos no dia 31 de Dezembro de 1944, na igreja de Penha de França. Estavam poucos convidados mas estavam as minhas irmãs, e alguns amigos. Fui com um fato de fazenda bege muito bem confeccionado e um chapéu bege oferecido pela Lili Pinto Coelho, uma grande amiga, para quem tive o enorme prazer de trabalhar na casa dela no Estoril.
A nossa primeira casa foi no Quartel do Carmo, no largo do Carmo, vivemos lá seis meses. Um dos meus sítios preferidos, pois ia passear ao Chiado. Depois mudámos para o Quartel da Ajuda, onde o avó estava colocado. A residência seguinte seria fora do país, muito longe. Fomos viver para Timor Lorosae, para onde o Avó foi convidado para ir chefiar o quartel. Foram tempos muito felizes, onde aprendi muito e tive de gerir a distância de Portugal e da família que ainda restava.
Retornados de Timor, fomos para Aveiro morar, onde já levávamos a Mô e onde o João Nuno iria nascer.
Adorei morar em Aveiro, tínhamos uma casa muito gira, na Avenida Lourenço Peixinho, a Mô calcorreava as escadas o dia inteiro, entre os gatos e o quintal andava ela sempre a fazer tibornices (mixórdia de terra, água, plantas...) naquela altura nem o "skip" ajudava. O João Nuno veio a nascer nessa casa, era um bebé muito gordinho e muito bem disposto.
Regressámos a Lisboa e por indicação duma irmã do Zé, a Miana, havia um 3º andar em São Domingos de Benfica livre para irmos visitar. Eu fui de comboio visitar a casa, e gostei muito, pois ficava inserida numa zona de Lisboa onde haviam poucas casas, muitas quintas e muito verde, nomeadamente Monsanto.
E aí ficámos, aliás ainda hoje cá estou, neste terceiro andar sem elevador, do qual não quero sair pois aqui tenho muitas histórias, lembranças, memórias. Umas muito boas, outras menos boas, mas a vida é isso mesmo. Aliás um bom livro tem sempre capítulos muito risonhos e outros em que se chora, verdade?
Viveste em Timor Lorosae, a terra do Sol nascente na zona de montanha. Conta-nos como era lá viver?
Desde a viagem até lá chegarmos tudo foi uma aventura. A viagem num navio enorme - o Niassa - durante 3 meses. Fizemos várias paragens – Luanda, Lourenço Marques e outro porto que não me recordo.
Vivemos lá durante cinco anos e foram sem dúvida muito "ricos", com muita aprendizagem, desafios, choques culturais e com muita saudade.
Quando lá chegámos ainda não tínhamos a nossa casa pronta, estava a ser construída na montanha pelos locais. Tinha muitos animais - dois cães, um gato, um bambi… dava-lhes a comida que tinha.
O nosso empregado chamava-se LeloBao.
Quando morava em timor tive a oportunidade de ir até à Austrália de avioneta, tive um bocadinho de medo. O piloto era muito bonito… mas não me lembro como se chamava. Tenho os timorenses no coração, são um povo muito meigo, muito diferente mas muito amável. Foram tempos muito díficeis mas guardo boas memórias.
O avó Zé era Coronel da Guarda Nacional Republicana. Uma esposa de militar fica sempre na sombra do marido ou consideras que a tua personalidade nunca se perdeu e que juntos eram mais fortes?
O Zé era um homem muito imponente, muito bonito, exigente mas gostava que eu fosse como sou. Vivia na sombra mas nunca perdi a minha vontade. Não sinto que alguma vez me tenha de ter calado ou posto de parte por ele assumir um papel de liderança e de ser militar.
Mas os tempos eram outros, não podíamos expressar-nos como agora o fazemos. Embora eu fosse um pouco à frente.
Por exemplo, quando fomos para Timor e embarcámos no navio até à terra do sol nascente, achei que o mais prático era vestir calças e não os vestidos da época. Por isso e com a ajuda da minha irmã Eduarda fizémos calças, muito confortáveis, com tecidos frescos para que pudesse na viagem e em Timor estar mais à vontade. Verdade que durante muito tempo não trabalhei e era o que se pode dizer uma Dona de Casa. Tomava conta da Mô e do João Nuno, fazia trabalhos de costura, mas sempre procurei mais para a minha vida e para a minha “carreira” se é que se pode apelidar dessa forma.
Foste conselheira de beleza da Madame Campos, uma marca de cosmética que infelizmente desapareceu mas que durante muito tempo foi líder de mercado. Quais os produtos que na altura vendias mais? O que te fazia feliz ao trabalhar para esta empresa?
Foi das melhores experiências da minha vida ser consultora de beleza da Madame Campos. Uma marca pioneira, especialista, muito boa qualidade, inovadora. É um orgulho para mim ter trabalhado numa das primeiras marcas de cosmética, de produtos de beleza e cuidados femininos. E era excelente consultora! Tinha imensas clientes e nesse tempo conheci imensas pessoas com as quais aprendi, partilhei experiências e ganhei muito em termos profissionais e humanos.
Os melhores produtos eram todos! Sem excepção! Lembro-me do creme hidratante, do leite de amêndoas, da pasta de amêndoas, dos batons... Aqui em casa havia uma gaveta dos produtos de amostra. Era uma festa para as minhas netas Inês e Bába, pois elas pintavam-se a elas... e a mim também. Era uma marca familiar, que nos uniu e que nos fez tornar mais femininas.
És uma mulher da política e tinhas um ídolo o qual adoravas. Lembro-me de comícios que fui contigo e com a mamã em que íamos ouvi-lo falar. Refiro me ao Francisco Sá Carneiro. Porque é que o idolatravas?
Era um homem diferente, um líder, de coração bom e com um pensamento à frente do seu tempo. Acreditava na sua vontade de mudar o país, de fazer crescer a nossa economia, de apoiar os jovens, e de dar esperança! Adorava ouvi-lo falar, sempre fui uma mulher que gosta de conversar, de ouvir, de falar, de trocar opiniões. Foi uma tragédia a morte dele, pela forma que foi e que nunca se descobriu a causa. E foi um golpe duro a sua partida. Nunca mais houve ninguém como ele. Para nosso, ou vosso bem, espero que surja um novo “Sá Carneiro” que oiça o coração das pessoas, perceba as suas necessidades mas que seja muito inteligente para levar este país para um novo caminho.
Como achas que a política de hoje influencia os jovens de amanhã?
Hoje em dia em nada. Os políticos não são duros o suficiente, não têm carisma e não defendem o partido. São umbilicais.
Era bom que os jovens se apercebessem que nem todos precisam de ser médicos, advogados ou arquitetos para levar um país para frente. Era bom que quisessem defender o seu país, que quisessem enfatizar o bom que somos e que defendam as cores do partido,o laranja...
Qual achas que vai ser o legado que vais deixar no Mundo?
Os meus 2 filhos, os meus 4 netos e os meus 4 bisnetos. Dei muitas vidas. Gerei vidas e uma família muito grande. Uma dádiva que tenho de agradecer a Deus por ter dado ao mundo. E outras que hão-de vir com a marca da Bequinhas. Uma herança de ouro. Vou voltar a ficar viva, se partir entretanto, sempre que os meus gerarem vida eu vou estar entre eles. Essa é a minha Herança.
Dá uma mensagem a quem está a ler esta conversa.
Sejam Amigos, o Mundo precisa de Amor e de Honestidade. Se todos fôssemos mais honestos, mais amigos, certamente estaríamos todos melhores.
Sejam Alegres, Sinceros e Amigos. Não voltem as costas mas sim deêm as mãos, olhem nos olhos e sejam Amigos!!!
Nesta conversa ficou muito tema por falar, muita estória por contar, mas foi das conversas mais bonitas, mais inspiradoras e mais honestas que tive com a minha Avó.
As Avós são sem dúvida muito importantes na minha/nossa Vida. Acredito mesmo que têm o dom de perdoar, de ajudar, de nos acalmar e de nos amar infinitamente.
Meus queridos filhos, a Avó Mô estará sempre connosco. Basta guardá-la no coração.